Otoni Mesquita (*)
São diferentes imagens, registros da memória afetiva e do imaginário, cenas idílicas e nostálgicas que insistem em habitar naqueles que a experimentaram e a amaram, nas suas diferentes maneiras e consigo transportam seus fragmentos. São estas lembranças que resistem e desafiam o processo de transformação, certamente, carregadas com uma grande dose de saudosismo. A mesma saudade que habitou diferentes tempos, mas que não impediu que a cidade deixasse para trás grande parte de seus elementos e hábitos naturais. Apesar de tudo, é a mesma terra dos Baré e dos igarapés, ainda que muitos de seus habitantes já não sejam capazes de se reconhecer, em suas etnias. Mesmo que as águas de alguns igarapés continuem a correr para o Rio Negro, já não são as mesmas. Sábio era o filósofo Heráclito.
Resgatar a cidade a partir de suas imagens é um exercício de memória e afeto, daqueles que experimentaram e dos que chegaram mais recentemente, mas desejam conhecer e se envolver com os espaços que experimentam cotidianamente. Sem dúvida, é somente uma relação íntima, de pertencimento, que poderá produzir uma argamassa especial, capaz de sustentar e preservar muitos dos elementos da cidade que já não existe, mesmo assim, resistem as memórias que se misturam ao turbilhão das coisas perdidas, perante as necessidades e desejos, pouco pensados.
A construção da imagem de uma cidade conta com a participação de variados elementos. São referências e configurações compostas por várias épocas, conta com muitas narrativas e nem sempre mantidas em sua matéria. Muitos elementos físicos já se perderam, no entanto, as referências permanecem vivas na memória de seus habitantes. São impressões, fantasias e outros aspectos vinculados às experiências e vivências individuais. No entanto, esses dados também participam ativamente do processo de construção da imagem e são tão relevantes quanto aos novos elementos materiais, que passam a participar da paisagem cotidiana contemporânea.
A história da cidade de Manaus é muito mais ampla e diversa do que os registros históricos e as imagens produzidas em seus diferentes momentos. De certa maneira, cada um de nós carrega consigo uma cidade particular, construída a partir de suas vivências e memórias afetivas. Impossível captar, com precisão, uma única imagem ou impressão que atenda a todos.
Parte das imagens desse conjunto se apresenta originalmente, em preto e branco, mas, ao serem selecionadas para esta publicação, foram relidas e, em geral, colorizadas, além de receberem acréscimos retirados de outras imagens fotográficas, sobretudo, os céus resultantes. Sem dúvida, uma ótica comprometida com uma nova época, tentando favorecer múltiplas leituras e releituras da mesma cidade. Propomos as intervenções como uma proposta de diálogo entre diferentes tempos da cidade, buscando preservar grande parte da originalidade das cenas.
Do ponto de vista acadêmico é possível lembrar que o estudo das imagens da cidade vêm desempenhado um papel fundamental na pesquisa histórica e resgate da memória das cidades. Ainda que tais referências se reconstruam perante diferentes perspectivas e contextos é fundamental investigá-la e recolher indícios capazes de promover interpretar representações dos seus diferentes tempos. Além da contribuição aos estudos acadêmicos e as relações afetivas para com a cidade, é preciso ressaltar o caráter artístico desse material, assim como o apuro técnico de seus autores (desenhistas, aquarelistas, gravadores, fotógrafos e artistas digitais).
Muitas imagens promovem o acesso e dão sentido aos espaços e coisas materiais que se perderam, mas permanecem em nós, como os banhos dos igarapés de nossa infância e adolescência. São boas memórias que permanecem guardadas em nós, só precisam de um estímulo para reativá-las, apesar das descaracterizações de muitos espaços, continuamos a amar a cidade como se fosse a mesma terra dos Baré ou “cidade Sorriso” que em algum momento experimentamos. Uma nova cidade se apresenta e com elas as novas concepções do mundo contemporâneo. É agora uma cidade do mundo.
(*) Artista plástico, professor, jornalista, escritor e historiador.