Nada a ver com as insistentes filas nos bancos. Delas fujo como o diabo da cruz. Para isso, refugio-me na internet, essa revolucionária tecnologia pela qual conquistamos (quem diria!) o que até há pouco tempo era físico e filosoficamente impossível: o poder da ubiquidade. Esse poder deixou de ser uma faculdade divina, como está registrado nos dicionários, e passou, também, a ser prerrogativa de todos nós, pobres mortais, desde que estejamos entre os incluídos digitais, é claro. Maravilha podermos estar ao mesmo tempo em diferentes lugares! Fila de banco, portanto, é coisa do passado. Ou, digamos, quase do passado, sempre que a net velha de guerra nos transporta virtualmente para o tempo das diligências.
Refiro-me, na verdade, à pilha desordenada de livros que cresce a olhos vistos na estante à paciente espera de leitura. Há aquisições envelhecidas, assim como aquelas que saíram das prateleiras das livrarias dias atrás. Incrível essa compulsão íntima de continuar comprando livros, mesmo sabendo que o tempo é um adversário implacável. O que sempre me alimenta o ímpeto é a esperança de que um dia, não sei quando, eu poderei devorar todos até a última página. Meu amigo Diomário, de Santa Catarina, confessou-me esses dias ter aguardado mais de quarenta anos para devorar um livro sobre Charles de Gaulle esquecido em sua estante. Enquanto isso não acontece, vou-me contentando com uma relação diária com eles, destituída de qualquer sentimento mais profundo. Uma espécie de flerte apenas.
Nesses dias passei por isso. Dá-se da seguinte forma. Aproximo-me como quem não quer nada. Pego aleatoriamente um deles. Surpresa boa! “Lavoura arcaica” de Raduan Nassar! Antigo na fila. Não sei mais desde quando. Edição de capa dura, papel jornal já amarelecido pelo tempo e pela umidade. Dessas que a gente compra nas bancas por um preço bem especial. Com o cuidado de quem tem um frágil tesouro entre as mãos, folheio as primeiras páginas. A demora na leitura de alguns trechos mais longos me transmite a sensação de ciúme dos outros, que, empilhados, anseiam por serem lidos. O momento exige frieza e pouco envolvimento. Deixo Raduan de lado e me salta às mãos Saramago. “Caim”, lançado em 2009. Abro direto na dedicatória. “A Pilar, como se dissesse água”. Incrível síntese de paixão. Sinto familiaridade com os trechos iniciais. Dou-me conta, pelo marcador estacionado entre as páginas 60 e 61, de que aquela foi uma viagem interrompida.
Há outros, tantos e tantos outros, à espera de um tempo que seja de colheita.
(O. Sena)
(*) Do projeto de livro “Memórias de um aprendiz de escritor”, em fase de gestação e pleno trabalho pré-natal
Foto: Carolline Sena