Por: Felipe Wanderley (*)
Medida Provisória que incentiva grilagem de terras no Brasil prestes a ser votada na Câmara dos Deputados em meio a crise do coronavírus é tirar terra do patrimônio público e dar a quem ocupou de forma ilegal.
Em meio à pandemia do novo coronavírus, o governo federal e a bancada ruralista, porta-vozes dos grandes empresários do agronegócio brasileiro, tentam emplacar no Congresso Nacional, a aprovação de uma medida que deve premiar posseiros que invadiram terras públicas no Brasil, incentivando a prática do crime de grilagem no país.
A pretexto de ampliar a regularização fundiária no país, a MP 910/2019 dispensa comprovantes de posse ou vistoria por parte do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) a ocupantes de áreas de até 15 módulos fiscais, o que na Amazônia corresponde a cerca 1600 hectares (equivalentes a 1600 campos de futebol).
Apelidado de “MP da Grilagem” por parlamentares da oposição, especialistas e observadores, a MP parece feita sob medida para beneficiar grandes posseiros de terras públicas, o pode incentivar a prática da grilagem e aumentar ainda mais o desmatamento e a tensão social tão presentes na Amazônia brasileira.
“Tirar terra do patrimônio público e dar a quem ocupou de forma ilegal, legitimar o crime e aumentar ainda mais a tensão e o desmatamento na região”, diz o cientista social e ex-secretário executivo de Política Fundiária do Amazonas, Lúcio Carril, que também já atuou no Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra) e no antigo Ministério do Desenvolvimento Agrário, hoje Ministério da Agricultura.
“Essa MP facilita a vida de um crime organizado que existe no país. Isso, além de incentivar a grilagem, nos põe numa situação mais difícil em nível internacional, já que o mundo vem acompanhando de perto as medidas do governo Bolsonaro, que vem facilitando o desmatamento na Amazônia e a violência contra os povos na nossa região”, diz ainda o cientista, em referência a desmontes de órgãos de fiscalização como Ibama e ICMbio, promovidas pelo governo federal, e flexibilização do uso de armas no campo.
Na boca do caixa
Na quarta-feira, 6, o relator da proposta, o deputado Zé Silva (Solidariedade-MG), afirmou que tem a palavra do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (Democratas-RJ) de que colocara a MP em pauta, apesar do compromisso declarado por Maia de que iria colocar em votação apenas matérias relativas ao combate a Covid-19.
O presidente da República, aliado do agronegócio, também pressiona para a votação do relatório. Informações da imprensa nacional dão conta de que Bolsonaro já atua trocando cargos estratégicos no governo com partidos do Centrão para obter apoio a proposta. Ele chegou a pedir apoio público para a MP em sua conta no Twitter, na última quinta-feira, 7.
Para o deputado de oposição José Ricardo (PT/AM), pelo conteúdo polêmico, a matéria deveria ser melhor discutida no Congresso e ser submetida a audiências públicas antes de ser colocada em votação. “Não poderia ser tratada nesse momento em que a pandemia de coronavírus é assunto prioritário”, opina.
Ele diz ainda que o governo deveria ter programa de regularização de terras, dando prioridade aos pequenos produtores. “Esse seria o caminho correto e adequado, não beneficiar grandes grileiros que criaram grandes impactos e cometeram crimes ambientais”.
Já o deputado Alberto Neto (Progressistas), da base governista, disse está cobrando para que a MP seja colocada em votação mesmo sem um acordo com a oposição, já que ela corre risco de caducar. “Para não acontecer igual a MP da carteira estudantil”, comparou.
Questionado pelo Amazonas no Congresso se o assunto deveria ser tratado mesmo diante da crise sanitária e econômica desencadeada pela pandemia de coronavírus, o deputado afirmou que é possível conciliar medidas para o combate à covid-19 com outras medidas importantes para o país. “Hoje (quarta-feira, 6,), por exemplo, estamos tendo sessão solene ao invés de votar a MP 910”, exemplificou.
Desigualdade no campo
Outra crítica recorrentes a MP 910/2019 é que ela atenderia aos interesse de grandes posseiros de terra em detrimentos dos pequenos e da chamada agricultura familiar.
Em coluna no jornal Estado de São Paulo, o coordenador do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), André Lima, explica a última versão do texto do relator Zé Silva (Solidariedade-MG), que costura na Câmara um consenso para a votação do relatório que, segundo ele, já foi garantida pelo presidente da Casa.
“A MP beneficia imóveis com área superior a seis vezes a área máxima considerada para pequenos posseiros. Isso significa, de acordo com dados do próprio Incra, beneficiar mais de 5 mil posseiros com área total de mais de 3,4 milhões de hectares entre médios e grandes”, escreve Lima.
“De acordo com dados da Universidade Federal de Minas Gerais, estado do deputado relator da MP, mais de 97,5% dos pequenos beneficiários (mais de 198 mil posseiros) detém pouco mais do que os 5 mil grandes posseiros que poderão ser premiados por ocupar terras públicas com a MP. Os grandes correspondem a somente 2,5%, mas detém mais de 30% da área total em regularização”, disse ainda.
Prejuízo aos pequenos
Essa evidente desigualdade, que ao invés de ser resolvida, pode ser agravada pela MP 910/2019, também se verifica no acesso a políticas públicas de apoio e fomento por parte desses pequenos produtores, problema que muitas vezes tem relação direta com a grilagem de terras por grandes posseiros.
“Muitas vezes, o grileiro invade a reserva legal de pequenos produtores (área que deve ser preservada de uma propriedade rural e que, na Amazônia, corresponde a 80% da propriedade), o que inviabiliza o acesso ao crédito e a outras políticas públicas”, aponta o ex-secretário de política fundiária do Amazonas, Lúcio Carril.
Terra improdutiva
Carril destaca ainda que, segundo dados do Censo Agropecuário de 2006, a maior parte dos alimentos servidos no mercado interno brasileiro e produzido pela agricultura familiar e que grande parte das áreas griladas são absolutamente improdutivas, tendo, portanto, pouca relevância para a produção de riqueza no país.
“Grande parte dessas áreas griladas não são terras que vão servir para a atividade produtiva. Uma vez legalizadas, elas servem de garantia para empréstimos bancários. Se você quer legalizar terra, tem que manter o programa de terra de regularização dos pequenos produtores e não facilitar a vida de grileiro”, defende.
Conflito agrário
De acordo com a doutora em Ciências Sociais pela Unesp e coordenação nacional do Movimento Sem Terra (MST), Kelli Mafort, em entrevista à revista Carta Capital, na ocasião da publicação da MP pelo governo federal, às vésperas do Natal de 2019, a medida pode ampliar o conflito agrário no país.
“O proprietário pode dizer: esta terra é minha, e, como não há necessidade de comprovação de posse, ele pode se sobrepor a outras demandas no mesmo local, de áreas para demarcação indígena, de quilombolas, ou ainda de assentamentos. Ele, inclusive, pode declarar que é dele uma área com um acampamento de sem-terra. Imagine a situação explosiva no campo em relação à sobreposição, o conflito de interesses em uma mesma propriedade. Isso, somado à política de flexibilização do uso de armas no campo, nos faz temer que possa acontecer até um aumento de assassinatos no campo. É muito grave”.
(*) Jornalista
Foto: Creative commons/Ibama