A decisão inédita permite extração do óleo canabidiol para uso próprio, sob prescrição médica, no tratamento de ansiedade, estresse pós-traumático e fobias sociais
Por unanimidade, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu, pela primeira vez na história, nesta terça-feira (14), salvo-conduto para cultivo artesanal de maconha (cannabis sativa) com fins medicinais.
A autorização permite a extração do óleo canabidiol para uso próprio, sob prescrição médica, no tratamento de ansiedade, estresse pós-traumático e fobias sociais.
Leia aqui a decisão do STJ.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já autoriza a importação de produtos derivados de maconha para tratamentos de saúde. O plantio caseiro, no entanto, mais acessível, ainda não foi regulamentado.
Os ministros do STJ analisaram recursos de pacientes e familiares que utilizam regularmente produtos à base de maconha. Eles pediram autorização para o plantio da cannabis sem correr o risco de serem enquadrados na Lei das Drogas.
A decisão, a princípio, vale apenas para os casos analisados. Porém, deve direcionar julgamentos similares em instâncias inferiores, de acordo com matéria do jornal Estadão, de acordo com a Forum.
O ministro Antônio Saldanha afirmou que a decisão é um “ato de resistência ao obscurantismo. Infelizmente, o Judiciário tem que entrar nessa seara. Existe uma ação deliberadamente retrógrada do Estado”, disse.
Já o ministro Rogerio Schietti, relator de um dos recursos, disse que o tema está contaminado por um “discurso moralista, baseado em dogmas e estigmas”.
“Ainda temos uma negativa do Estado brasileiro, quer pela Anvisa quer pelo Ministério da Saúde, em regulamentar essa questão. Nós transcrevemos decisões da Anvisa transferindo ao Ministério da Saúde essa responsabilidade e o Ministério da Saúde eximindo-se dessa responsabilidade, dizendo que é da Anvisa. E, assim, milhares de famílias continuam à mercê da omissão, inércia e desprezo estatal por algo que, repito, implica a saúde e o bem-estar de muitos brasileiros, a maioria deles incapacitados de custear a importação dessa medicação”, destacou.
Ministro diz que pacientes não podem ser tratados “como se fossem traficantes”
Schietti ressaltou, ainda, que é função do Judiciário garantir que os pacientes não sejam tratados “como se fossem traficantes de drogas. Essas questões surgem quando o Estado, aqui referido como um Estado Policial, e eu tenho que concordar, deixa de tratar a questão como uma questão de saúde pública e resolve tratá-la como uma questão criminal”, acrescentou.
O que é Canabidiol e pra que serve
O canabidiol tem mostrado resultados muito impressionantespara uma variada gama de doenças graves, sobretudo naquelas de origemneurológica e nas dores crônicas, mas também tem sido usado até para hipertensão e fibromialgia.
A substância é encontrada numa planta: a Cannabis sativa, ou seja, maconha. É aí que surge uma infinidade de supostos dilemas apontados “perigosos”, que relacionam a aplicação do fármaco em doentes ao consumo estigmatizado da “marijuana”, fumada mundo afora.
Para se obter o canabidiol é necessário algum tipo de procedimento laboratorial que não está acessível ao cidadão comum, portanto, ficando restrito à indústria farmacêutica, visto suarelativa complexidade. A substância é extraída da maconha por meio de processos físicos ou químicos como a hidrodestilação, a destilação a vapor, a extração de compostos orgânicos por solvente orgânico, a extração com gordura fria, a maceração, a extração por micro-ondas ou a extração assistida por ultrassom.
A partir desse ponto, se obtém um óleo que poderá ser usado, variando em relação à dose e posologia, no controle de sintomas de enfermidades comoesclerose múltipla, esquizofrenia, Doença de Parkinson, epilepsia, ansiedade, Doença de Alzheimer, enxaqueca, hipertensão arterial, transtorno do espectro autista, fibromialgia, entre tantas outras condições raras e de difícil tratamento.
Nos EUA, o uso do canabidiol foi liberado definitivamente há mais de quatro anos, após exaustivos testes realizados por gigantes do setor de medicamentos, assim como na União Europeia, onde o óleo está à disposição dos doentes desde 2019, quando testes realizados no Reino Unido, França, Espanha, Alemanha e Itália mostraram suas características promissoras. O uso do canabidiol, ainda que em fase experimental e com restrições, já ocorria nesses países há quase 10 anos.
O Epidyolex, nome comercial desenvolvido pela GW Pharmaceuticals Plc, é atualmente o mais forte no mercado e mostrou-se eficaz até mesmo contra doenças raras e gravíssimas como as síndromes de Dravete de Lennox-Gastaut.
No Brasil, o canabidiol também pode ser comprado por doentes que dependem da substância para ter melhor qualidade de vida, só que por meio de uma burocracia que dificulta sua aquisição. O preço é elevado, há necessidade de guias específicas e que permitem a compra de quantidades muito reduzidas, o que parece ser uma bobagem das autoridades sanitárias nacionais, uma vez que a substância não é intoxicante ou psicoativa, e tampouco causa dependência.
A Anvisa analisa medicamentos com o composto desde 2015 e em 2020 deu o registro para o primeiro remédio à base do óleo. No entanto, o plantio de maconha com fins estritamente medicinais e supervisionado pelas autoridades, o que daria muito mais vazão à produção, diminuiria o preço e aumentaria a oferta, é rejeitado pela agência regulatória por pressão do governo de Jair Bolsonaro, identificado com pautas obscurantistas, anticientíficas e ultrarreacionárias, que buscam de todas as formas associar um medicamento importante à maconha fumada.
TJ-SP autoriza pai a plantar maconha para tratar filho com autismo e epilepsia
Transtorno de espectro autista só foi controlado por meio do óleo de cannabidiol. Desembargador usou como base o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida e à saúde ao autorizar o cultivo de cannabis.
A 3ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo usou como base o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida e à saúde ao autorizar um pai a cultivar maconha para extrair óleo cannabidiol utilizado no tratamento do filho, que sofre de transtorno do espectro autista e de epilepsia.
“Não passa despercebida a omissão legislativa em regulamentar o cultivo doméstico da cannabis em situações como a presente, de modo que negar ao filho do paciente acesso ao fármaco importaria em flagrante violação ao direito a uma vida saudável. Portanto, o reclamo formulado encontra justificável ressonância no panorama visualizado, merecendo o acolhimento do pleito“, afirmou o relator do recurso, desembargador Jayme Walmer de Freitas.
Segundo Freitas, o direito ao cultivo da cannabis é vital para a saúde do filho de Jean Max de Araújo, que teve o pedido de salvo-conduto feito pelo defensor público Artur Rega Lauandos.
Na ação, o defensor público afirma que “em razão dos comportamentos disfuncionais e por vezes agressivos o filho do paciente chegou a fazer uso de diversos medicamentos psiquiátricos, que ou não trouxeram melhora dos sintomas descritos ou apresentaram efeitos colaterais significativos sendo suspensos“.
O menino, então, passou a fazer uso do óleo de cannabidiol, apresentando “melhora significativa dos sintomas comportamentais e maior estabilidade psíquica“.
Mas o medicamento, importado dos EUA, tem um alto custo e o pai optou pelo óleo feito pela Associação Abrace Esperança.
“No entanto, a Associação, a despeito de seus louváveis esforços, tem inconstância na produção e entrega do medicamento e, diante das interrupções no fornecimento, João passou a experimentar oscilações do quadro comportamental“, diz o defensor.
O pedido para plantação de Cannabis Sativa para extração do óleo foi negado em primeira instância pelo juiz Casio Ventosa Chaves, até ser autorizado pelo TJ-SP no dia 17 de maio deste ano.
Pela decisão, as autoridades ficam impedidas de prender e proceder a persecução penal pela produção artesanal da cannabis e pelo uso conforme prescrição médica da planta em questão, vedando-se, ainda, sua apreensão ou destruição. Além disso, o plantio será monitorado pela Polícia Civil, com visitas regulares ao imóvel do beneficiado.
Segundo o relator, o direito ao cultivo da cannabis é vital para a saúde do filho do paciente e, sendo assim, uma eventual negativa a esse pleito significa que o Poder Judiciário “compactuaria com a precariedade do bem-estar demonstrada por essa pessoa, mostrar-se-ia omisso, relegaria a cura à própria sorte, e endossaria o medo e o descaso, adjetivos que não se coadunam com a finalidade da justiça que é buscar o equilíbrio em todas as situações que lhe são trazidas“.
Leia a íntegra da decisão do TJ-SP
Fonte: Site da Revista Forum, site STJ
Fotos: Homer News/Reprodução e Pixabay(por Forum)